Herança digital​ no direito sucessório: desafios e soluções jurídicas

Entenda os desafios da herança digital no Direito Sucessório e veja como orientar seus clientes sobre a sucessão de bens virtuais e ativos online

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Hoje, praticamente todo cidadão do mundo tem a sua vida digitalizada, em algum nível. E-mails, perfis em redes sociais, criptomoedas, arquivos na nuvem e milhas aéreas formam um acervo de bens e dados que, por vezes, supera o valor de bens físicos. 

Com isso, surge uma nova questão a ser abordada pelo Direito: com a morte de seu titular, que destino deve ser dado a esse patrimônio digital?

O questionamento se dá justamente porque o Código Civil de 2002, considerado o marco do direito privado brasileiro, não prevê essa realidade. 

A legislação sucessória, pensada para imóveis, carros e aplicações financeiras, encontra dificuldades para regular a transferência de ativos intangíveis, muitos deles atrelados a direitos da personalidade como a privacidade e a imagem.

O que cria um vácuo normativo a ser preenchido por decisões judiciais, termos de serviço das “big techs” e projetos de lei que buscam modernizar o ordenamento jurídico. 

O tema da herança digital, hoje, se apresenta como uma das fronteiras mais complexas e relevantes do direito sucessório.

Por isso, neste artigo vamos explorar tudo de mais importante e relevante que abrange a herança digital: sua relação com as regras sucessórias vigentes; as controvérsias; e as alternativas para o planejamento sucessório digital.

O que é herança digital

Herança digital é o conjunto de bens, direitos e obrigações de natureza digital deixados por uma pessoa após sua morte. 

São ativos que compõem o acervo digital, passíveis de transmissão, ou não, aos seus herdeiros. A complexidade do tema está na natureza distinta desses bens.

Para fins de análise jurídica, é prudente dividir o acervo digital em duas categorias principais:

Bens de valor patrimonial: são os ativos digitais que possuem expressão econômica direta e mensurável. 

Integram essa categoria as criptomoedas, tokens não fungíveis (NFTs), saldos em contas de pagamento, domínios de internet, milhas de programas de fidelidade, canais monetizados em plataformas de vídeo e perfis em redes sociais com alto engajamento e potencial publicitário. 

Em tese, a transmissão desses ativos segue a lógica dos bens tradicionais, pois são passíveis de avaliação e partilha.

Bens de valor existencial: são os ativos digitais de caráter pessoal, afetivo ou sentimental, sem valor econômico imediato. 

Incluem contas de e-mail, perfis pessoais em redes sociais, mensagens privadas, fotografias, vídeos e documentos armazenados em serviços de nuvem. 

A transmissão desses dados esbarra em direitos fundamentais do falecido, como privacidade, intimidade e sigilo de correspondência. O que gera intensos debates jurídicos.

Um mesmo ativo pode ter natureza híbrida. Um perfil no Instagram, por exemplo, pode ser ao mesmo tempo um diário pessoal, com valor existencial, e uma fonte de renda, com valor patrimonial. 

Essa duplicidade adiciona camadas de complexidade à sua destinação após a morte.

Projetos de lei sobre herança digital

Como já vimos, o Código Civil não prevê situações de herança digital. Por isso, o Congresso Nacional debate propostas para regulamentar a sucessão de bens digitais. 

Afinal, a ausência de uma lei específica gera insegurança jurídica e sobrecarrega o Poder Judiciário. Hoje, diversos projetos de lei buscam preencher essa lacuna.

Um dos mais conhecidos é o PL Nº 6.468/2019, de autoria do deputado Elias Vaz (PL). A proposta sugere a inclusão do conceito de “patrimônio digital” no Código Civil. 

O projeto define o que são bens digitais e os divide entre conteúdo de natureza pessoal e de natureza patrimonial. Além disso, prevê a figura do “testamento digital”, um instrumento para que a pessoa determine em vida o destino de suas contas e dados.

Outra iniciativa que vale ser mencionada apesar de já ter sido arquivada é o PL Nº 7.742/2017, do senador Jorginho Mello. 

O projeto buscava estabelecer que contas em redes sociais e de e-mail, com conteúdos de natureza pessoal e privada, não seriam transmitidas aos herdeiros, salvo manifestação expressa do titular. 

Caberia, então, aos herdeiros a decisão de apagar os perfis ou transformá-los em memoriais.

Mais recentemente, o PL Nº 1.689/2021, do deputado Aliel Machado (PV), propõe alterar o Código Civil e o Marco Civil da Internet para dispor sobre a herança digital. 

O texto define o que compõe o acervo digital e estabelece que, na ausência de manifestação de vontade, os herdeiros podem decidir sobre o destino das contas, com a exclusão de comunicações privadas.

Embora com abordagens distintas, fica claro um objetivo comum nos projetos citados: estabelecer regras claras para a transmissão de ativos digitais. 

Enquanto isso, a pauta segue sendo definida pela jurisprudência e pela interpretação das normas existentes.

Herança digital e direito sucessório

A aplicação do direito sucessório tradicional à herança digital é o principal desafio técnico-jurídico da área. 

O pilar do direito sucessório brasileiro é o princípio de saisine, previsto no Artigo 1.784 do Código Civil. Segundo ele, a herança se transmite aos herdeiros legítimos e testamentários no momento da morte.

Quando o acervo hereditário é composto por bens de valor patrimonial, a aplicação do princípio é mais direta. 

Criptomoedas, por exemplo, são consideradas bens móveis e devem ser arroladas no inventário, avaliadas e partilhadas entre os herdeiros. 

Porém, nesses casos, a dificuldade é mais prática do que jurídica: localizar as carteiras digitais e obter as chaves de acesso.

Já quando se trata de bens de valor existencial e intangível é que costumam surgir os conflitos. 

A transmissão automática de senhas de e-mails ou de acesso a conversas privadas é conflitante com os direitos da personalidade do falecido, protegidos pela Constituição Federal. 

Ou seja, o direito à herança dos sucessores entra em rota de colisão com o direito à privacidade e ao sigilo de correspondência do titular da conta. Mesmo depois de seu falecimento.

Deparados com casos assim, os juízes ponderam os interesses em jogo: de um lado, o direito dos herdeiros à memória e ao luto. Do outro, a proteção da intimidade do falecido.

Outro ponto de tensão é o conflito entre a legislação nacional e os termos de serviço (ToS) das plataformas digitais. 

As big techs mais populares estabelecem em seus contratos de adesão que as contas são pessoais e intransferíveis, prevendo seu encerramento com a morte do usuário. 

Essa cláusula contratual, no entanto, pode ser considerada nula se confrontar a soberania da lei brasileira e o direito à herança.

Herança digital: controvérsias e alternativas

A ausência de uma lei específica obriga advogados e clientes a buscarem soluções preventivas para mitigar conflitos futuros.

A principal controvérsia está na ponderação de direitos. O acesso a mensagens privadas pode revelar informações íntimas do falecido, que ele não desejaria compartilhar. 

Por outro lado, a família pode argumentar que o acesso é necessário para preservar a memória ou até para localizar bens patrimoniais. 

O fato dessa balança não pender para um lado ou outro tem feito o Judiciário agir de forma cautelosa, muitas vezes negando acesso a conteúdos privados e autorizando apenas a exclusão ou transformação do perfil em memorial.

Além disso, como já vimos, há um conflito entre os termos de serviço das plataformas e a lei brasileira.

Os tribunais brasileiros têm afastado a aplicação de cláusulas contratuais que impedem a transmissão de bens digitais com valor econômico. A questão permanece mais complexa para dados existenciais.

Diante disso, uma alternativa bastante utilizada por advogados especialistas tem sido incluir a herança digital no planejamento sucessório. Confira algumas alternativas:

Testamento: a forma mais segura de dispor sobre o patrimônio digital é o testamento. O titular pode incluir cláusulas específicas, conhecidas como “testamento digital”, para nomear um herdeiro ou terceiro de confiança (o “executor digital”) responsável por gerenciar, transferir ou encerrar suas contas. É possível detalhar o destino de cada ativo, seja ele patrimonial ou existencial.

Mandato post mortem: trata-se de um contrato em que o titular outorga a uma pessoa de confiança poderes para administrar seus bens digitais após sua morte. Embora sua validade seja debatida no direito brasileiro, é um instrumento que pode servir como diretriz da vontade do falecido.

Ferramentas das plataformas: algumas empresas de tecnologia oferecem soluções próprias. O Google possui o “Gerenciador de Contas Inativas”, que permite ao usuário definir o que acontecerá com seus dados após um período de inatividade. A Meta (Facebook/Instagram) permite a designação de um “contato herdeiro”, que pode gerenciar o perfil transformado em memorial.

Casos de herança digital no Brasil

A jurisprudência brasileira possui casos que ilustram os desafios da herança digital. 

Um dos primeiros envolveu o acesso ao perfil do Orkut de uma pessoa falecida. Na época, os tribunais lidavam com a ideia de que um perfil digital continha valor afetivo para a família, autorizando medidas para sua preservação ou acesso limitado.

Mais recentemente, uma decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) ganhou notoriedade, quando uma mãe entrou na justiça para obter acesso ao perfil de sua filha no Facebook, falecida em um acidente. 

O objetivo era recuperar fotos e memórias. O TJMT determinou que a empresa fornecesse os dados, ponderando que o direito à memória da família se sobrepunha à política de privacidade da plataforma, desde que não houvesse violação de conversas privadas.

Já em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negou a uma viúva o acesso irrestrito às contas de e-mail e redes sociais do marido falecido. 

O tribunal entendeu que a medida violaria a privacidade e a intimidade não só do marido, mas também de terceiros que com ele se comunicaram. A decisão autorizou apenas o acesso a informações de caráter patrimonial.

No campo das criptomoedas, há casos em que herdeiros sabem da existência dos ativos, mas não conseguem acessá-los por falta das chaves privadas. 

O “drama”, nesses casos, não está na disputa judicial contra uma plataforma em si, mas em uma “corrida” para quebrar a criptografia ou encontrar os códigos deixados pelo falecido. 

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