Um dos preceitos básicos do Direito é que ele deve acompanhar as transformações sociais e culturais, bem como a evolução dos diversos ambientes que permeia e regula.
Especialmente no Direito Penal, condutas consideradas crime em épocas passadas podem ser repensadas e, com o tempo, descriminalizadas.
Esse fenômeno é chamado de abolitio criminis e reflete a capacidade do ordenamento jurídico de se adaptar aos novos valores da sociedade.
Neste artigo, veremos os fundamentos da abolitio criminis, e também exemplos históricos, além de analisarmos a “continuidade normativa”, mecanismo que busca equilibrar a segurança jurídica e a adaptação legislativa.
O que é abolitio criminis
A abolitio criminis consiste na revogação do status penal de uma conduta, fazendo com que um ato, antes tipificado como crime, deixe de ser punível.
Porém, essa medida não deve ser confundida com a anistia ou indulto, pois, enquanto eles são dispositivos de extinção ou comutação da pena, a abolição do crime, abolitio criminis, elimina o enquadramento jurídico do fato.
O princípio está ligado à ideia de que o Direito Penal não deve punir condutas que, com o passar do tempo, tornam-se socialmente aceitáveis ou que não mais ferem os valores fundamentais da sociedade.
Assim, o legislador pode decidir que uma determinada conduta não é mais criminosa. Procedimento que encontra respaldo no Artigo 5º da própria Constituição Federal:
Art. 5º, XL. “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”
Esse dispositivo garante que, uma vez revogada a tipificação penal, o ex-condenado possa ter seu histórico penal limpo, promovendo uma justiça retroativa que beneficia quem já cumpriu sua pena ou foi injustamente condenado.
Este princípio também está presente no antigo Código Penal, especialmente no artigo 2º, que determina:
Art. 2º. “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.”
Dessa forma, a abolitio criminis assume uma função corretiva, eliminando a punição para condutas que já não estão de acordo com os preceitos morais e jurídicos vigentes.
Mas é importante ressaltar que a abolitio criminis não implica necessariamente em impunidade absoluta.
Em determinadas situações, a conduta pode ser readequada a um novo tipo penal ou ser tratada sob um regime de sanções administrativas, o que configura o chamado “mecanismo de continuidade normativa”.
Exemplos de abolitio criminis
Ao longo da história, diversas condutas foram objeto de abolitio criminis. Mudanças no entendimento social e na interpretação dos direitos fundamentais impulsionaram a revisão de leis penais que, outrora, refletiam valores conservadores e normativos da época.
Entre os exemplos mais emblemáticos, destacam-se a criminalização do adultério, da vadiagem, do crime de imprensa e, em alguns casos, do jogo do bicho. Confira alguns exemplos:
Adultério
Durante muitos anos, o adultério foi considerado crime no Brasil. A norma que o criminalizava estava prevista no antigo Código Penal, regulamentado pelo Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Art. 235. “O homem casado que, tendo conjunção carnal com pessoa diversa da sua esposa, ou a mulher casada que, tendo conjunção carnal com pessoa diversa do seu marido, incorrerá na pena de detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano.”
Com o passar do tempo e a evolução dos direitos individuais, esse artigo passou a ser considerado incompatível com a proteção à intimidade e à vida privada, o que culminou na sua revogação e na descriminalização do adultério.
Vadiagem
A vadiagem, historicamente, era vista como um comportamento socialmente reprovável. Prevista no Decreto-Lei Nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, chamada de Lei de Contravenções Penais, a conduta do vadio era alvo de sanções penais.
Art. 59. “Deixar de trabalhar, de forma habitual, sem justificativa idônea, caracterizando o vadio, sujeita o infrator às penas de detenção e multa, a critério do juiz, visando a coibir o comportamento de quem se recusa a contribuir com o convívio social e a economia familiar.”
Com o avanço dos estudos sociais e o entendimento de que a criminalização da pobreza e do desemprego viola princípios de dignidade humana, a condenação pela vadiagem foi considerada inconstitucional.
Crime de Imprensa
O crime de imprensa, previsto pela Lei Nº 5.250, de 9 de julho de 1967, é outro exemplo marcante.
Essa lei, que visava coibir abusos e excessos na divulgação de informações, chegou a ser utilizada para limitar a liberdade de expressão. O Art. 6º do dispositivo estabelecia:
Art. 6º. “A divulgação de informações que atentem contra a honra ou a imagem de pessoa ou instituição, sem a devida comprovação, será punida com detenção, podendo incorrer em sanções mais severas, conforme a gravidade do ato.”
Com o passar do tempo e a ampliação dos direitos fundamentais, principalmente a liberdade de expressão, a criminalização de determinadas manifestações no âmbito da imprensa foi revista.
A nova legislação e a interpretação constitucional passaram a privilegiar o direito à informação, culminando na revogação ou modificação dos dispositivos que restringiam a atividade jornalística.
Jogo do bicho
O jogo do bicho é outra conduta que, embora popular e historicamente enraizada na cultura brasileira, já foi objeto de repressão penal.
Em diversas localidades, a prática foi considerada crime e estava sujeita a punições rigorosas, embora não haja um dispositivo federal específico que descreva a criminalização na forma.
A mudança de postura social e o reconhecimento de que o jogo do bicho, muitas vezes, integra manifestações culturais e econômicas informais, levaram à sua descriminalização em certas jurisdições. Essa evolução ilustra como a abolitio criminis pode ocorrer tanto a nível federal quanto em esferas municipais ou estaduais, acompanhando a dinâmica dos valores e práticas culturais.
Outras condutas e evolução tecnológica
Além dos exemplos clássicos, a abolitio criminis também se manifesta em condutas relacionadas ao avanço tecnológico. Em décadas passadas, atos como o uso de radiotransmissores clandestinos eram passíveis de punição.
A legislação penal, à época, tipificava tais condutas de forma exemplar, visando proteger a ordem pública e a segurança das comunicações.
Um exemplo é encontrado na antiga regulamentação dos crimes contra as telecomunicações:
Art. 267. “Utilizar, instalar ou manter em funcionamento aparelho de radiocomunicação sem a devida autorização dos órgãos competentes, configurando-se como crime, sujeito à pena de detenção e multa, conforme a gravidade do fato.”
Com o passar dos anos e a ampliação do acesso à tecnologia, diversos desses dispositivos foram reavaliados, reconhecendo que a criminalização excessiva poderia restringir inovações e o direito à informação.
Assim, a abolitio criminis tem servido, também, para retirar do rol de condutas típicas aquelas que se tornaram obsoletas ou que passaram a ser compreendidas de maneira diferente no contexto digital.
Lei de drogas e medidas socioeducativas
Outro ponto de relevância no debate sobre a abolitio criminis é a mudança no tratamento dado aos usuários de drogas.
Durante muitos anos, o simples porte de drogas para consumo pessoal era enquadrado como crime, levando a punições que variavam de acordo com a interpretação das leis anteriores.
Um exemplo disso é a Lei Nº 6.368, de 1976, que previa a criminalização de certas condutas ligadas ao uso e tráfico de drogas:
Art. 1º. “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito ou transportar drogas, sem a finalidade de tráfico, será punido com detenção, a depender da quantidade e das circunstâncias, configurando-se como conduta típica e passível de repressão penal.”
ATENÇÃO: este dispositivo foi posteriormente revisto e, com a promulgação da Lei Nº 11.343, de 19 de agosto de 2006, houve uma reclassificação das condutas relacionadas às drogas, direcionando o foco para medidas de prevenção e tratamento, em vez da repressão penal exclusiva.
Abolitio criminis e continuidade normativa
A continuidade normativa é um instituto que busca preservar a eficácia do Direito Penal mesmo quando há abolição formal de determinadas condutas.
O mecanismo garante que a sociedade não fique desprotegida diante de atos que, embora descriminalizados em um contexto, ainda possam trazer prejuízos significativos.
Na prática, a continuidade normativa ocorre quando a lei revoga a tipificação penal de uma conduta, mas outra norma, por entender a relevância do fato, reclassifica o comportamento sob um novo enquadramento jurídico.
Dessa forma, o agente pode ser processado e punido segundo as novas diretrizes legais, evitando a sensação de impunidade. A exemplo da transformação de certos delitos de menor potencial ofensivo.
A revogação de dispositivos que criminalizavam práticas antes condenadas não necessariamente elimina a possibilidade de punição. Mas pode levar à aplicação de medidas alternativas, como penas restritivas de direitos ou programas socioeducativos.
Um exemplo prático disso é o crime de atentado violento ao pudor, cuja redação original do Código Penal previa:
Art. 213. “Quem, mediante violência ou grave ameaça, constranger alguém a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se praticasse outro ato libidinoso, será punido com reclusão de 4 a 10 anos.”
Apesar da revogação específica do tipo penal, a conduta foi incorporada ao crime de estupro, sendo mantida a punição, mas adaptando o enquadramento jurídico à nova compreensão dos direitos sexuais e da integridade física e psicológica das vítimas.
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