O Direito de Família é considerado um dos ramos do Direito Civil que passou pelas transformações mais profundas e aceleradas, nos últimos 25 anos, na busca por se adaptar às mudanças estruturais e de valores da sociedade brasileira.
Uma evolução não apenas pontual, mas sim principiológica: o Direito de Família deixou de ser um campo regido por formalidades legais e questões patrimoniais, para focar na dignidade da pessoa humana, no afeto e no melhor interesse da criança e do adolescente.
E entre as teses que ganharam força nos tribunais brasileiros nas últimas décadas está a do abandono afetivo. Matéria que ultrapassa a obrigação material e entra no campo da responsabilidade civil por omissão de cuidado.
A discussão jurídica busca reconhecer que a ausência de afeto, cuidado e amparo pode gerar danos psicológicos e emocionais passíveis de reparação.
Responsabilidade que não se aplica apenas de pais para filhos, mas também, em uma via de mão dupla, de filhos para pais idosos.
Por isso este artigo vai detalhar os conceitos; a fundamentação legal; os requisitos para a caracterização do dano não só do abandono afetivo, mas também do abandono afetivo inverso.
O que é abandono afetivo
Abandono afetivo é a conduta omissiva de um dos genitores em relação ao dever de cuidado para com o filho.
Obrigação essa que não se limita apenas ao sustento material (objeto da pensão alimentícia), mas também a convivência, o amparo emocional, a participação na formação psicológica e social da criança ou adolescente.
A base legal está, claro, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Constituição Federal:
Art. 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Na mesma linha, o ECA, em seu artigo 4º, reforça esse dever e o detalha:
Art. 4º. “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.”
Mas a consolidação do entendimento do abandono afetivo veio com a jurisprudência criada, em especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que a violação desse dever de cuidado configura um ato ilícito.
Para caracterizar o abandono, é necessário demonstrar três elementos essenciais da responsabilidade civil: a conduta omissiva do genitor; o dano psicológico sofrido pelo filho; e o nexo de causalidade entre a omissão e o dano.
A ausência voluntária e injustificada do convívio, a indiferença afetiva e a falta de participação na vida do filho são exemplos da conduta omissiva.
O dano, por sua vez, deve ser comprovado por meio de laudos psicológicos ou psiquiátricos que atestem o prejuízo à formação da personalidade do indivíduo.
Abandono afetivo inverso
O abandono afetivo inverso ocorre quando filhos maiores e capazes deixam de prestar assistência emocional, psicológica e de cuidado aos seus pais idosos.
A lógica é a mesma do abandono afetivo direto, mas a relação de vulnerabilidade se inverte com o passar do tempo, já que o genitor, antes provedor de cuidado, passa a necessitar de amparo.
Essa forma de abandono se manifesta de diversas maneiras: pode ser a ausência de visitas, a falta de contato, a recusa em auxiliar nas necessidades diárias, a indiferença quanto ao estado de saúde e até mesmo o isolamento social do idoso.
Assim como no abandono afetivo direto, não se trata de contingência material, mas da violação do dever de cuidado e da obrigação de amparo.
A caracterização do abandono inverso também exige a comprovação do tripé da responsabilidade civil.
A conduta omissiva está ligada à falha do filho em cumprir o dever constitucional de amparo.
Já o dano é caracterizado pelo sofrimento; angústia; depressão e deterioração da saúde física e mental do idoso, decorrentes da solidão e do desamparo.
E o nexo causal está relacionado à ligação direta entre a negligência do filho e o prejuízo sofrido pelo genitor.
“Lei do afetivo inverso”
Com a jurisprudência do “abandono afetivo”, cresceu também o interesse pelo tema, o que reflete em um grande número de pesquisas a respeito do assunto em sites de buscas na internet.
Um dos termos mais pesquisados é “lei do afetivo inverso”. Porém, não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma legislação específica sobre a prática.
O conceito de “abandono afetivo inverso” é uma construção doutrinária e jurisprudencial que se baseia em um conjunto de normas já existentes, que impõem aos filhos o dever de cuidar dos pais na velhice.
A principal fundamentação está no Artigo 229 da Constituição Federal:
Art. 229. “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”
Essa norma constitucional estabelece uma obrigação de mão dupla: assim como os pais têm o dever de cuidar dos filhos, estes, ao atingirem a maioridade, adquirem o dever de amparar os pais idosos ou vulneráveis.
A Lei Nº 10.741/2003, conhecida como Estatuto do Idoso também prevê esta obrigação. E não só para a familia:
Art. 3º. “É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”
O Estatuto do Idoso também tipifica como crime, no Artigo 98, o ato de abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
Indenização por abandono afetivo
A indenização por abandono afetivo, seja direto ou inverso, tem natureza de reparação por dano moral.
O objetivo não é compensar a falta de afeto com dinheiro, mas sim mitigar o sofrimento da vítima e sancionar o ofensor por sua conduta ilícita. A medida possui um caráter compensatório, punitivo e pedagógico.
A fixação do valor da indenização (quantum indenizatório) é um dos pontos mais complexos do processo.
Isso porque o juiz não possui uma tabela ou um critério matemático para definir o montante. A decisão se baseia nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, com a análise de diversos fatores.
Entre os critérios considerados estão a gravidade da conduta do ofensor, a duração do abandono, as condições econômicas das partes e, de forma crucial, a extensão do dano psicológico sofrido pela vítima.
Laudos periciais detalhados, que descrevem o impacto do abandono na saúde mental do autor da ação, são fundamentais para subsidiar a decisão do magistrado e, até mesmo, justificar um valor mais expressivo.
Cada caso é analisado de forma individual, ainda que a jurisprudência sirva como um guia.
Ação do abandono afetivo
A competência para julgar ações de abandono afetivo é, em regra, das Varas de Família, já que a origem da controvérsia reside na violação de um dever inerente às relações familiares.
Para propor uma ação de abandono afetivo, o primeiro passo é a construção de uma petição inicial sólida, que narre os fatos de forma clara e detalhada.
É preciso expor a conduta omissiva, o período em que ocorreu o abandono e, principalmente, as consequências danosas para a vítima.
A causa de pedir deve ser fundamentada nos dispositivos legais já mencionados: artigos 227 e 229 da Constituição; artigos do ECA ou do Estatuto do Idoso; e os artigos 186 e 927 do Código Civil.
A fase de produção de provas é considerada o coração do processo. O sucesso da demanda depende da capacidade do advogado de comprovar os fatos alegados. O conjunto probatório pode incluir:
- Prova documental: fotografias, cartas, e-mails, mensagens de texto ou registros de redes sociais que demonstrem a ausência de contato e convívio. Para o abandono inverso, relatórios de assistentes sociais, prontuários médicos e registros de visitas em casas de repouso são relevantes.
- Prova testemunhal: depoimentos de familiares, amigos, vizinhos, professores, cuidadores ou terapeutas que possam atestar a ausência do réu e o sofrimento do autor. As testemunhas devem ser capazes de relatar fatos concretos sobre a falta de cuidado e assistência.
- Prova pericial: esta é considerada por muitos especialistas a prova mais importante. A realização de uma perícia psicológica ou psiquiátrica é essencial para atestar o dano e o nexo de causalidade. O laudo técnico emitido por um profissional qualificado irá descrever o quadro emocional da vítima, diagnosticar possíveis transtornos (como depressão, ansiedade, baixa autoestima) e correlacionar esses sintomas com a experiência de abandono.
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