Instituído no Brasil pelo Decreto Imperial de 18 de junho de 1822, o Tribunal do Júri surgiu, curiosamente, com a competência inicial restrita aos crimes de imprensa, meses antes da declaração da Independência.
Foi só com a Constituição de 1824 e o Código de Processo Criminal de 1832, que o instituto migrou para a esfera penal comum, até se consolidar na Constituição de 1988 como cláusula pétrea.
Mais de dois séculos depois, dados do “Mapa Nacional do Tribunal do Júri”, ferramenta lançada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2024, revelam que o país acumula cerca de 96 mil processos em tramitação há pelo menos cinco anos sem desfecho definitivo.
O que é o tribunal do júri
O Tribunal do Júri constitui um órgão do Poder Judiciário, previsto no art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal de 1988:
Art. 5º […]
“XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”
Sua principal característica é a heterogeneidade: um juiz, denominado juiz-presidente, conduz os trabalhos e resolve questões de direito, enquanto sete cidadãos leigos, sorteados dentre a sociedade, formam o Conselho de Sentença.
A esses jurados cabe a decisão sobre a materialidade e autoria do crime.
Essa estrutura visa democratizar a justiça penal, ao permitir que os pares do réu decidam sobre seu destino.
Diferente do juízo singular, onde a técnica jurídica estrita fundamenta a sentença, no júri, os jurados decidem por íntima convicção.
Eles não precisam fundamentar seus votos, bastando responder “sim” ou “não” aos quesitos formulados pelo magistrado.
A competência do Tribunal do Júri no Brasil é mínima e taxativa para os crimes dolosos contra a vida, sejam eles consumados ou tentados.
A legislação permite, contudo, que a competência se estenda a crimes conexos. Ou seja, caso um indivíduo cometa um homicídio e, na mesma ação, oculte o cadáver ou porte arma ilegal, o júri julgará todas as infrações.
Princípios do tribunal do júri
Quatro princípios constitucionais regem a atuação no Tribunal do Júri e moldam a estratégia da defesa e da acusação. São eles:
Plenitude de defesa
Distinta da “ampla defesa” aplicável aos processos comuns, a plenitude de defesa oferece um espectro de proteção maior ao acusado.
No júri, a defesa pode utilizar argumentos jurídicos, mas também extrajurídicos, sociológicos, políticos e morais.
O advogado possui liberdade para explorar as falhas do inquérito, a vida pregressa do réu ou o contexto social do fato.
O juiz-presidente deve intervir e dissolver o conselho de sentença se considerar o réu indefeso, tamanha a importância desse princípio.
Sigilo das votações
A decisão dos jurados ocorre em sala especial ou, na falta desta, após o esvaziamento do plenário.
O objetivo é preservar a integridade física e a liberdade de convicção dos jurados, blindando-os de pressões externas ou populares.
A contagem dos votos também segue regra específica: ao atingir quatro votos em um sentido, encerra-se a contagem daquele quesito, sem revelar o placar total, para manter o sigilo sobre a opinião de cada membro.
Soberania dos veredictos
A decisão dos jurados sobre o mérito da causa detém soberania. Isso quer dizer que um tribunal de instância superior (TJ ou TRF) não pode substituir a decisão dos jurados por outra.
Em caso de apelação sob o argumento de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, o tribunal pode apenas anular o julgamento e determinar a realização de um novo júri.
Jamais um tribunal togado pode absolver ou condenar no lugar do Conselho de Sentença.
Competência para crimes dolosos contra a vida
A Constituição fixa a competência mínima: o legislador ordinário não pode retirar do júri o julgamento de homicídios, infanticídios, abortos e participações em suicídio.
Pode-se, porém, ampliar essa competência, embora a legislação atual se restrinja aos crimes contra a vida e seus conexos.
Fases do tribunal do júri
O procedimento do júri é bifásico (ou escalonado), dividido em Judicium Accusationis (juízo de acusação) e Judicium Causae (juízo da causa).
E o advogado precisa adotar posturas distintas em cada etapa.
Primeira fase – Sumário da culpa
Esta etapa inicia com o oferecimento da denúncia e vai até a decisão de pronúncia. O objetivo não é condenar, mas verificar a existência de indícios suficientes de autoria e prova da materialidade para levar o caso a plenário.
O rito segue a seguinte ordem: resposta à acusação; oitiva do Ministério Público; audiência de instrução (oitiva de testemunhas de acusação, defesa e interrogatório do réu); e alegações finais. Ao término, o juiz pode tomar quatro decisões:
- Pronúncia: o juiz admite a acusação e remete o réu a julgamento pelo júri. Decisão de natureza interlocutória mista.
- Impronúncia: o juiz considera não haver provas suficientes de autoria ou materialidade. O processo encerra-se, mas pode ser reaberto se surgirem novas provas.
- Absolvição sumária: o juiz absolve o réu de imediato. Ocorre quando há prova cabal de inexistência do fato; de não ser o réu o autor; de o fato não constituir crime; ou haver causa de isenção de pena/exclusão de ilicitude, como legítima defesa comprovada de plano.
- Desclassificação: o juiz entende que o crime não é doloso contra a vida e remete os autos ao juiz singular competente.
Na atuação defensiva desta fase, o foco concentra-se na produção de provas técnicas e na tentativa de evitar o júri popular, buscando a impronúncia ou a absolvição sumária.
Assim, o advogado deve questionar a validade das provas e apontar nulidades no inquérito.
Segunda fase – juízo da causa (plenário)
Após a preclusão da pronúncia, inicia-se a fase de preparação para o julgamento, em que as partes podem arrolar testemunhas para depor em plenário e requerer diligências.
No dia do julgamento, o rito segue passos rigorosos:
- Sorteio dos jurados: de uma lista de 25 convocados, sorteiam-se sete. Defesa e acusação podem recusar até três jurados cada, sem motivação.
- Instrução em plenário: ouvem-se a vítima (quando viva), testemunhas e interroga-se o réu.
- Debates orais: acusação e defesa possuem uma hora e meia cada para expor suas teses. Pode haver réplica e tréplica de uma hora. O uso de recursos audiovisuais, maquetes e reconstituições é comum para facilitar a compreensão dos fatos.
- Quesitação: o juiz elabora perguntas objetivas aos jurados.
- Votação e sentença: após a votação na sala secreta, o juiz profere a sentença. Em caso de condenação, ele deve fixar a pena.
Crimes do tribunal do júri
Como já vimos, a competência constitucional abrange quatro tipos penais específicos previstos no Código Penal, todos caracterizados pelo dolo contra a vida.
Homicídio (Art. 121)
O homicídio pode ser simples; privilegiado, cometido sob violenta emoção ou relevante valor social/moral; ou qualificado, com motivo fútil, torpe, meio cruel, impossibilidade de defesa da vítima, ou feminicídio.
Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou automutilação (Art. 122)
Crime complexo que envolve a participação de terceiro na decisão da vítima de tirar a própria vida ou se ferir.
Infanticídio (Art. 123)
Matar o próprio filho, durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal. É um crime próprio da mãe.
Aborto (Arts. 124, 125, 126 e 127)
Engloba o autoaborto, o aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante e o aborto sem consentimento.
Crimes Conexos
Embora não sejam crimes contra a vida, delitos como ocultação de cadáver, porte ilegal de arma, sequestro ou estupro, quando cometidos no mesmo contexto fático do crime doloso contra a vida, são atraídos para a competência do júri.
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