Imagine que você está em um supermercado e decide provar se a uva está doce o suficiente antes de colocá-la no carrinho. Ao colocar uma uva na boca, soa o alarme, seguranças armados o cercam e logo a polícia chega para levá-lo sob custódia.
A cena, digna dos maiores pastelões de ação hollywoodianos, apesar da uva pertencer ao mercado e você ter cometido “furto”, jamais aconteceria de verdade. E não pela falta de estrutura da polícia, que tem coisas mais importantes para se preocupar.
E sim, porque o Direito Penal rege as condutas mais graves e seleciona os bens jurídicos de maior relevância para a vida em sociedade. Em um Estado Democrático de Direito, a intervenção penal precisa ser a última opção, a ultima ratio.
É isso que chamamos de princípio da insignificância, ou bagatela e é considerado um instrumento de racionalidade e justiça.
Neste artigo, vamos abordar o conceito do princípio da insignificância; detalhar os requisitos consolidados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ); além de explorar seu possível impacto em estratégias de defesa.
O que é o princípio da insignificância
O princípio da insignificância funciona como uma causa de exclusão da tipicidade do fato. Ou seja, ele afasta a chamada tipicidade material.
Para que um fato seja considerado crime, ele precisa se encaixar em dois níveis de tipicidade: a formal e a material.
A tipicidade formal é a simples adequação da conduta do agente à descrição contida na lei penal. Se um indivíduo subtrai um bem alheio, a conduta se amolda, formalmente, ao Art. 155 do Código Penal, que estabelece o crime de furto.
A tipicidade material, por outro lado, exige algo mais. Ela demanda que a conduta tenha provocado uma lesão relevante ou um perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido pela norma.
Isso significa que o Direito Penal não se ocupa de ofensas mínimas, como a uva no supermercado, por exemplo.
No caso de uma conduta formalmente típica, se ela for materialmente atípica por sua irrelevância, vale o princípio da insignificância. Ou seja, a lesão causada ao bem jurídico, de tão pequena, não justifica a mobilização de todo o aparato punitivo do Estado.
Mas este princípio não está expresso na legislação penal. Trata-se de uma construção da doutrina e da jurisprudência, com base em outros princípios constitucionais e penais, como o da intervenção mínima, da fragmentariedade e da lesividade.
O princípio da fragmentariedade determina que o Direito Penal só deve proteger os bens jurídicos mais importantes e apenas contra as lesões mais graves.
Já o princípio da intervenção mínima estabelece que a criminalização de uma conduta só se legitima quando for o meio necessário para a proteção de determinado bem.
Em resumo, a insignificância é um filtro. Ela impede que o sistema de justiça criminal se sobrecarregue e direciona o foco para as infrações que de fato afetam a paz social.
Requisitos do princípio da insignificância
A aplicação do princípio da insignificância não é um ato de arbítrio do julgador. Ao longo do tempo, em especial por meio de decisões do STF, foi consolidado um conjunto de quatro requisitos cumulativos.
E, em regra, a ausência de qualquer um deles impede o reconhecimento da bagatela. Isso ficou “oficializado” durante análise no julgamento do Habeas Corpus 84.412/SP, de relatoria do Ministro Celso de Mello.
A partir daí, a defesa precisa demonstrar, de forma objetiva, a presença de todos os requisitos no caso concreto. São eles:
- Mínima ofensividade da conduta do agente: análise da ação em si. A conduta não pode ter sido praticada com violência ou grave ameaça à pessoa. Também se avalia o grau de planejamento ou a forma de execução. Um furto simples, sem arrombamento ou concurso de agentes, apresenta uma ofensividade menor que um furto qualificado.
- Nenhuma periculosidade social da ação: transcende o ato individual e observa seu reflexo na coletividade. A ação não pode gerar um sentimento de insegurança ou instabilidade social. Furtos em série, mesmo de pequeno valor, podem indicar uma periculosidade social que afasta a insignificância, pois a reiteração da conduta gera um alarme na comunidade.
- Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento: o foco está no juízo de censura que a sociedade faz sobre a conduta. Leva-se em conta as circunstâncias do fato e as condições pessoais do agente. Por exemplo, a subtração de um alimento por uma pessoa em situação de extrema necessidade tem uma reprovabilidade muito menor do que o furto de um item supérfluo.
- Inexpressividade da lesão jurídica provocada: é o vetor mais conhecido e, muitas vezes, o ponto de partida da análise. A lesão ao bem jurídico tutelado, em geral o patrimônio, deve ser ínfima. A jurisprudência costuma utilizar um percentual do salário mínimo vigente à época dos fatos como parâmetro, embora não seja uma regra absoluta. Além disso, o valor do bem subtraído deve ser confrontado com o patrimônio da vítima. A subtração de R$ 100,00 de uma grande rede de supermercados tem um impacto distinto da mesma subtração do patrimônio de um pequeno comerciante.
É importante destacar que há crimes em que a aplicação do princípio é rechaçada de forma quase unânime pelos tribunais superiores.
É o caso do roubo e da extorsão, pela presença de violência ou grave ameaça. O mesmo ocorre com crimes contra a Administração Pública, já que a moralidade administrativa não se mede por critérios patrimoniais.
Em crimes de tráfico de drogas, a quantidade de entorpecente, por menor que seja, não costuma ser considerada insignificante, pois o tipo penal visa proteger a saúde pública.
Absolvição pelo princípio da insignificância
O reconhecimento do princípio da insignificância possui uma consequência processual direta e poderosa: a atipicidade da conduta. Se o fato é atípico, ele não é crime. Logo, não há justa causa para a persecução penal.
O impacto prático dessa tese pode ocorrer em diferentes momentos do processo, o que exige do advogado atenção estratégica desde a fase investigatória.
A primeira oportunidade para arguir a insignificância é na fase de inquérito policial ou no momento do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.
Se a tese for acolhida pelo promotor, ele pode promover o arquivamento do inquérito. E se a denúncia for oferecida, o juiz pode rejeitá-la por faltar justa causa para o exercício da ação penal.
Caso a denúncia seja recebida, a defesa deve apresentar a tese em sua resposta à acusação. Neste momento, o acolhimento leva à absolvição sumária do acusado.
A norma estabelece que o juiz deverá absolver sumariamente o réu quando verificar que “o fato narrado evidentemente não constitui crime”.
Nós temos aqui no Jusblog um artigo inteiramente voltado à absolvição sumária. Confira:
Absolvição sumária: quando cabe e como fundamentar o pedido
Se, ainda assim, o processo prosseguir, a tese deve ser reiterada e reforçada durante a instrução processual e, ao final, nas alegações finais.
A absolvição com base no princípio da insignificância se dá por mérito, o que resulta em “coisa julgada material”. Isso significa que o réu não poderá ser processado novamente pelo mesmo fato.
O agente não terá qualquer registro criminal decorrente daquele processo, não sofrerá os efeitos de uma condenação e terá sua primariedade preservada.
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